ARQUIVO ATLAS #01

Uma visão sobre a História da Arte: como as grandes pandemias foram retratadas pelas artes visuais entre os séculos XVI - XX.


Paulo José Falcão Patriota

(Graduando do curso de Licenciatura Plena em História pela Universidade Federal Rural de Pernambuco UFRPE)


Ao longo de toda a História, a humanidade esteve imersa no aterrador medo da morte e presenciou um sem número de situações que poderíamos chamar de apocalipticas. Desde as guerras entre famílias rivais, reinos, principados e posteriormente estados, desastres naturais como a grande erupção do Vesúvio e a consequente destruição de Pompeia no ano de 79 D.C, até o que iremos nos ater neste texto: as grandes pandemias e epidemias. Da Peste Negra a Gripe Espanhola, de que maneira os(as) artistas retrataram a sua própria realidade caótica? No que tange o momento atual, temos visto uma série de imagens perturbadoras em nossos smartphones, televisores e em todos os meios de comunicação sobre os perigos e cuidados perante a pandemia de Covid-19 que nos aflige. Essa overdose de informações e imagens se reverbera no imaginário popular, afetando de forma significativa a memória coletiva de populações diversas e acentuando o grande medo que nos acompanha durante toda a história, a morte iminente. Apesar de exaustivamente produzida, ainda é cedo para dizer de que maneira a arte do século XXI representará a angústia de nossos dias. Em meio ao caos, muitos se perguntam: qual a função da arte em um período de crise? Os estados tendem a investir nas áreas prioritárias para o enfrentamento e combate à pandemia, como a saúde e segurança, deixando de lado as ciências humanas e a arte como um todo. O cidadão comum teoricamente deve ficar em quarentena ou praticar o isolamento social, consumindo cada vez mais… Arte! Seja o cinema, música, literatura ou artes visuais, a arte distrai, faz refletir, proporciona medo, angústia e por último, mas não menos importante, reflete toda uma sociedade em crise. 

Do Medievo a atualidade, os artistas se preocuparam em demonstrar na tela os seus próprios medos, traumas, receios e de que maneira as doenças destroçaram populações inteiras, transformando as dinâmicas sociais e culturais de suas respectivas sociedades. De acordo com Sardis Medrano-Cabral, em artigo intitulado “The Influence of Plague on Art from the Late 14th to the 17th Century” (A influência da praga na arte do final do século XIV ao século XVII), no final do século XIV a Peste Negra influenciou significativamente a cultura europeia, a ideia da morte e da religião. Esse período foi marcado por diversas representações artísticas que capturaram momentos de infortúnio, sarcasmo e em menor medida, esperança. Este último aspecto indicado por Medrano-Cabral pode ser visto na obra de Antoon Van Dyck (1599-1641), intitulada de “Santa Rosália intercedendo pela Palermo atacada pela Peste” (1624) (fig.1). Dedicada à santa padroeira de Palermo, esta obra exalta a figura da Santa perante uma situação dramática: a chegada de um surto de peste em 1624, que matou grande parte da população e forçou Van Dyck a permanecer em quarentena por quase 1 ano e meio. Durante esse período em isolamento, Van Dyck criou uma série de obras que retratam o sofrimento, a angústia e até mesmo a esperança dos cidadãos de Palermo. 

(Santa Rosália intercedendo pela Palermo atacada pela Peste (1624), Antoon van Dyck) (Fig. 1)


O terror da Peste Negra ou peste bubônica, deixou uma visível, quase palpável, sensação de desespero, sendo esse sentimento refletido por pintores e literatos durante os séculos imediatos aos principais surtos. Este terror alterou o significado da morte e foi exaustivamente retratado através de caveiras em obras do período, este padrão foi denominado como "Vanitas", que de maneira geral significa "futilidade" e/ou "inutilidade", mais específicamente a futilidade dos bens e atividades terrenas. Outro significado entrelaçado a Vanitas é a expressão em latim "Memento Mori", em tradução livre "lembre-se que você vai morrer". 

Podemos citar o pintor flamengo Pieter Bruegel (1525-1569), nome de importância incontestável na pintura renascentista flamenga, tendo em suas obras um caráter único da representação do medo, da angústia e do desespero em relação a peste e a própria morte. Em obra intitulada “O Triunfo da Morte” (1562) (fig.2), Bruegel produz uma das mais tenebrosas representações sobre a destruição associada a uma pandemia. Na obra, podemos perceber um exército de esqueletos, comandados pela própria Morte montada a cavalo, que fazem um violento ataque a uma terra em chamas, no horizonte é possível identificar navios em colapso ou naufragados. Nesta obra, Bruegel quis demonstrar as fraquezas da humanidade e como pessoas de todas as classes sociais, sejam camponeses, clérigos ou nobres, podem ser atingidas pela morte. Na literatura, Giovanni Bocaccio foi responsável por uma das descrições mais significativas sobre o desenvolvimento da Peste no corpo humano, influenciando ativamente a produção imagética desse período. No Decameron (1353), Bocaccio escreveu:

“Tanto em homens quanto em mulheres, ele se traiu pela emergência de certos tumores na virilha ou nas axilas, alguns dos quais cresceram tão grandes quanto uma maçã comum, outros como um ovo ... Das duas partes do corpo, esse gavocciolo mortal logo começou a se propagar e se espalhar em todas as direções indiferentemente; após o que a forma da doença começou a mudar, manchas pretas ou lívidas aparecendo em muitos casos no braço ou na coxa ou em outro lugar, agora poucas e grandes, agora minúsculas e numerosas. Como o gavocciolo havia sido e ainda era um símbolo infalível de morte que se aproximava, também eram esses pontos em quem quer que se mostrassem. ”

O Triunfo da Morte (1562), Pieter Bruegel) (Fig. 2)

Passados seis séculos da explosão da Peste Bubônica na Europa, outra enfermidade ficaria registrada na História e na memória coletiva de grande parte da população mundial: a chamada Gripe Espanhola. De acordo com o Atlas Histórico do Brasil (FGV/CPDOC), também chamada la dansarina, gripe pneumônica ou peste pneumônica, a gripe espanhola foi uma violenta pandemia que atingiu o mundo entre 1918-1919, provocando milhões de mortes. É considerada como a mais severa pandemia da história da humanidade. É importante ressaltar que o mundo acabara de passar pela Grande Guerra ou Primeira Guerra Mundial (1914-1918), sendo esse aspecto um fator de traumas e novas perspectivas sobre e perante a morte. 

Os artistas do começo do século XX estavam imersos no caldo grosso da melancolia provocada pela Guerra e foram pegos de surpresa pela morte, não a morte pelas mãos de outros homens e mulheres, mas a morte invisível. Edvard Munch, pintor norueguês mundialmente conhecido por ser um dos precursores do expressionismo e impressionismo alemão, produziu obras como “O Grito” (1893) e “Desespero” (1892). Em 1919, realizou um auto-retrato enquanto era acometido pela Gripe Espanhola (da qual venceu). A pintura “Auto-retrato com Gripe Espanhola” (1919) (fig.4), retrata Munch cansado e sem expressão, esperando em isolamento o tempo passar. Por fim, podemos citar a obra “A Família” (1818) (fig.3), de Egon Schiele, pintor expressionista austríaco que retratou a própria família nua e fragilizada sofrendo as consequências da Gripe Espanhola. Schiele não conseguiu concluir a pintura, pois o vírus acabou vitimando o artista e sua esposa em um intervalo de três dias.

(A Família (1918), Egon Schiele) (Fig. 3)

(Auto-retrato com Gripe Espanhola (1919), Edvard Munch) (Fig. 4)


REFERÊNCIAS:
 

ARIES, Philippe. O Homem diante da morte. São Paulo: Editora Unesp, 2014. 

DELUMEAU, Jean. História do medo no ocidente, 1300-1800. São Paulo: Companhia das Letras, 2009. 

Gripe Espanhola. In: Atlas Histórico do Brasil. Fundação Getulio Vargas CPDOC, 2010. Disponível em: https://atlas.fgv.br/verbetes/gripe-espanhola Acesso em: 12/05/2020. 

MEDRANO-CABRAL, Sardis. The Influence of Plague on Art from the Late 14th to the 17th Century. Montana: Montana State University, 2005. 

STANSKA, Zuzanna. Plague in Art: 10 Paintings You Should Know in the Times of Coronavirus. Daily Art Magazine, 2020. Disponível em: https://www.dailyartmagazine.com/plague-in-art-10-paintings-coronavirus/ Acesso em: 13/05/2020. 

UJVARI, Stefan Cunha. A história da humanidade contada pelos vírus. São Paulo: Editora Contexto, 2008.

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