ARQUIVO ATLAS #02



Violência Contra Mulher e o Isolamento Social


Danielle Goberto Bastos

(Graduanda do curso de Licenciatura Plena em História pela Universidade Federal Rural de Pernambuco UFRPE)



        A Violência doméstica é um fenômeno historicamente oculto e considerado normal pela sociedade, tendo origens distantes. Os casos de violência domésticas só vêm à tona depois de anos de reivindicações das mulheres, tornou-se pauta desde as primeiras levas de manifestações feministas, que sempre lutou pela liberdade feminina e a acusação dos chamados crimes passionais, crimes de agressões física, sexual e psicológica era uma forma de libertá-las do silenciamento e de uma cultura que sempre negou os seus direitos e sempre alimentou sua submissão, tornando-as propriedades dos homens que tinham sua tutela e dessa forma permitindo que os homens extravasem sua agressividade “natural” sobre elas.

O corpo feminino sempre foi considerado um lugar de violência, não só física como simbólica. No início do Brasil Republicano, os casos de agressões eram notados em periódicos, escritos literários, processos criminais e noticiário policial. A maioria dos casos relatados eram entre pessoas dos segmentos inferiores da sociedade, o que auxiliou a criação do mito de que estes só aconteciam entre as pessoas pobres, acontece que as alterações entre os pobres eram mais fáceis de chegar a casos de polícia. Mas as contradições de gênero vão além da classe social, embora estas apresentem especificidades geradas pela diversidade cultural. De qualquer forma a violência doméstica se mostra presente em todas as classes sociais. 

Nesse mesmo período, pouco tempo após o fim do sistema escravista, a mulheres tornaram-se mantenedoras do lar, pois tinham mais propostas de emprego, nas casas de famílias. O homem pobre pelas condições via-se longe de tomar o lugar de mantenedor imposto pela sociedade, por vezes as mulheres demonstravam resistência a certos comportamentos dos seus companheiros, o que os levavam a partir para o uso da força. Sidney Chalhoub cita que desprovido do poder e autoridade no espaço público, eram assegurados pelo sistema vigente de possuí-los no espaço privado. 

As vítimas de violência por vezes quando iam denunciar alegavam a insatisfação com o companheiro e seu não cumprimento do papel de provedor, o que demonstra que ambos apoiavam-se nos papéis de gêneros estabelecidos no período pela sociedade. Certas mulheres que sofriam agressões nem chegavam a denunciar, pois, provavelmente, partilhavam das concepções machistas predominantes na sociedade, tornando-se cúmplices com o silêncio. Prova-se que existia uma procura pela adequação aos papéis impostos, uma aceitabilidade da situação e a mulheres que chegavam a procurar ajuda, não aguentavam mais o ambiente inóspito em que estavam inseridas. 

Quando as mulheres negavam o ato sexual estavam expostas a sofrer violência, pois a recusa era um grande motivo para causar conflitos com os companheiros ou maridos, mesmo após a separação alguns exigiam relações sexuais, até mesmo as mulheres que não tinham compromisso, em caso de recusa estavam sujeitas a sofrer agressões. Mais uma vez volta a citar o papéis impostos e a mulher ocupa um lugar de submissão, não só nas atividades do lar e nos desejos dos seus companheiros, mas tornam-se obrigadas a ter relações sexuais com eles, mesmo que não queiram e que não estejam juntos, simplesmente para satisfazê-los, a denúncia desses casos não levava a acusação desses homens por ser considerado uma necessidade natural do mesmo. 

O ciúme era um forte motivador para criação de problemas no lar. Em alguns casos de agressões, mesmo sem ter provas, os acusados legitimam-se sob o  argumento da suspeita de adultério, justificando a sua atitude como “legítima defesa da honra”. Uma argumentação que era comum e que inocentou muitos acusados dos crimes cometidos contra suas mulheres. Nesse período considerava-se que os homens poderiam ser agressivos impulsionados por “sentimentos repentinos” e inexplicáveis. Sempre foi solicitado exames de sanidade mental, alguns foram encaminhados ao hospício e outros, que tiveram sua sanidade confirmada, voltaram à sociedade livres dos crimes cometidos. 

Esses comportamentos expressam a pretensão de considerar o corpo da mulher como propriedade sua. E esta crença não é específica dos homens pobres, nas camadas mais favorecidas também estão presentes o mesmo condicionamento cultural. Umas das explicações é de que é dado direito ao homem de extravasar sua agressividade “natural” sobre os objetos de sua propriedade, sendo o corpo da mulher considerado uma propriedade sua, torna-se lugar próprio de extravasamento da agressividade masculina. As relações violentas não são exclusivas das camadas populares, manifestam-se também nos segmentos elevados, a diferença é que estes dispõem de recursos que evitam que os casos cheguem a conhecimento da polícia ou do público. 

Na segunda leva de manifestações feministas, mas precisamente no II Congresso da Mulher Paulista, começa a ser destacado a questão da violência contra a mulher. Durante o processo de redemocratização as mulheres propõe que suas reivindicações sejam incorporadas aos programas dos candidatos democráticos, tendo como principal questão a violência contra a mulher. Então surgiram o SOS-Mulher e o Centro de Defesa da Mulher, que tinham como objetivo assistir as mulheres vítimas de violência, com serviço voluntário de psicólogas e advogadas. Eram feitos grupos de reflexão sobre a violência e existia a procura dos meios de comunicação para promover o debate junto à opinião pública. 

Dois casos ocorridos na classe média alta deram visibilidade a luta,  o primeiro, quando uma mulher de classe média alta denunciou, em uma carta, ter sido espancada pelo marido, professor universitário, branco, considerado entre os intelectuais. Essa denúncia foi um fato histórico na luta contra a violência. O segundo, foi quando o milionário Doca Street assassinou a sua mulher, Ângela Diniz, em Cabo Frio. As feministas foram às ruas para exigir a punição do assassino, que ainda nessa época poderia ser absolvido sob a alegação de defesa da honra. As pressões dos grupos de mulheres junto a advogados esclarecidos fez com que o Poder Judiciário tratasse a questão de uma nova forma. No decorrer dessa luta ficou evidenciado a violência praticada contra a mulher e a conivência da sociedade e das autoridades constituídas, policiais e judiciárias. 

Essas entidades encontram diversos obstáculos, a começar pelos delegados de polícia ao receberem mulheres vítimas de violência, tratando as agressões como meras desavenças familiares, sugerindo que a vítima tivesse culpa por o homem se tornar tão agressivo, o que constrange a vítima e estimula o agressor. Na área jurídica não tem sido diferente, a defesa do acusado sempre procura diminuir os fatos acontecidos e culpar de certa forma a vítima. Ainda há uma insistência para reconciliação das partes, antes da abertura do inquérito policial. Tudo isso se transforma em um jogo de conivência da sociedade, da vítima e das autoridades que convergem para a manutenção do silêncio, impunidade e continuidade da relação. 

Outro ponto importante da luta das feministas foi a denúncia do estupro como forma de violência que atinge majoritariamente as mulheres. O estupro relatado nas páginas policiais do diários mais lidos era tratado como forma de ‘sadomasoquismo’, em que o acusado era considerado muitas vezes como “tarados” ou “anormais” e as vítimas eram consideradas provocadoras do ato, sendo posta como prostituta ou buscava ‘vingança’ do homem. As feministas passaram a reivindicar que este seja considerado um crime contra a pessoa e a que a defesa não possa usar a clássica alegação de que a vítima tenha provocado. 

Alguns anos depois foi criada a Delegacia Policial de Defesa da Mulher,  com um corpo de funcionárias, equipe interna e externa, de busca e captura, que tinha a função de atender exclusivamente os vários casos de violência contra a mulher, surgiu em diversos estados. Esses serviços junto ao SOS-Mulher auxiliou de forma oficial a constatar os constrangimentos que as mulheres passavam nas delegacias comuns de polícia. A criação dessas delegacias mostra um aumento do número de casos aflorando, trazendo a tona uma realidade anteriormente oculta. dessa forma surge a possibilidade de definir com precisão os diferentes tipos de crime contra a mulher.

            Outras políticas públicas foram implementadas como a Lei Maria da Penha sancionada em 7 de agosto de 2006 com o objetivo de criar mecanismos que previnam a violência doméstica e familiar contra a mulher, ela tipifica a violência, proibe transações penais e cria um aparato judicial e policial para auxiliar as mulheres da melhor forma. E em 9 de março de 2015 é sancionada a Lei do Feminicídio, incluindo mais uma modalidade de homicídio qualificado, quando o assassinato envolve violência doméstica e familiar, menosprezo ou discriminação à condição de mulher da vítima.

Apesar das conquistas feministas, os conflitos domésticos permanecem protegidos pelo mito do Lar Doce Lar. O que acontece na propriedade privada por vezes é velado e levado ao esquecimento, sem que parentes ou vizinhos se metam pela crença do “em briga de marido e mulher niguém mete a colher”. A mulher, ainda sim, constrangida de denunciar ou por medo do que possa ser feito depois, se vê presa em um lugar que só lhe gera traumas e não saem por vergonha, condições econômicas, por terem filhos, às vezes por falta de apoio da família e até mesmo por questões religiosas. 

No governo Temer ocorreu contenção de políticas públicas para as mulheres, retirando apoio e investimentos. O atual Presidente do Brasil fez alegações anteriores machistas que reforçam essas visões e “legitimam” certas ações. Dessa forma os casos de violência contra a mulher encontram certas brechas no governo e nas políticas públicas, o Estado cria políticas para que a precariedade de certas pessoas sejam minimizadas e outras maximizadas, o que procura dizer que a vida de alguns indivíduos vale menos.

Já havia sido previsto que os casos de violência doméstica aumentariam durante as medidas de isolamento social, em todo o mundo. Pensando na maior exposição das mulheres a comportamentos agressivos gerados pelo aumento do tempo de convivência e por tensões psicológicas.  A mulher encontra dificuldade de fazer denúncia pelo maior controle do agressor não só dos seus meios de comunicação como de uma possível saída na necessidade de denúncia presencial.

Durante o período de pandemia houve um grande aumento dos casos de violência e feminicídio, a causa não é o isolamento em si. A violência naturalizada, como tratada durante todo o texto, parte da cultura patriarcal e das relações de poder. A casa é o local onde mais ocorre denúncias de agressões às mulheres. Esse período as mulheres estão confinadas com seus companheiros em casa e é nesse momento que encontram-se mais suscetíveis a casos de agressões física, psicológica e sexual, por diversos motivos. A violência mais aguda está situada no âmbito das relações familiares na intimidade afetiva.



REFERÊNCIAS: 

TELES, Maria. Breve história do feminismo no Brasil. São Paulo: Brasiliense, 1999.
SOIHET, Rachel. O corpo feminino como lugar de violência. São Paulo: Proj História, 2002.
SANTOS, Lígia Pereira. Mulher e Violência: histórias do corpo negado. Campina Grande: Eduep, 2008.

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