ARQUIVO ATLAS #04


Protestos Pró-ditadura: 1964 e 2020. Uma cultura de desinformação


João Guilherme Chaves Maranhão de Araújo

(Graduando do curso de Licenciatura Plena em História pela Universidade Federal Rural de Pernambuco UFRPE)


O Brasil teve no primeiro semestre de 1964 uma série de manifestações e atos intervencionistas feitas por forças conservadoras da sociedade, elevando ainda mais a crise política vivida pelo governo João Goulart, que viria a sofrer um golpe militar logo em seguida. As vozes dessas manifestações ainda ecoam em 2020 durante a pandemia do Covid-19, sob um novo contexto e momento histórico que ameaçam o futuro do Brasil e a garantia do estado democrático de direito. 

No pouco tempo em que João Goulart foi presidente, o Brasil pode experimentar um período autenticamente democrático com a introdução de trabalhadores urbanos e rurais, de estudantes e intelectuais no cenário sociopolítico; surgimento de vários movimentos sociais, organização das ligas camponesas, reivindicações, expansão dos direitos de cidadania e trabalhistas. Apesar da experiência democrática numa república repleta de desigualdades sociais, o seu governo foi recheado de impasses e confrontos. Sua posse se deu por ser o vice de Jânio Quadros, que renunciou após 7 meses no poder, mas sendo vetado pelos ministros militares por ser de esquerda e taxado de adversário da ordem (ocorrendo situação parecida em 1955 com JK).Após manobras políticas de Leonel Brizola, protestos da OAB, UNE e vários setores da sociedade para respeitar a legalidade e a constituição, João Goulart pode assumir a presidência, mas tendo poderes limitados por um parlamentarismo sacado de última hora pela oposição, com Tancredo Neves para primeiro-ministro. 

Jango adquiriu os poderes presidenciais em sua totalidade após o plebiscito de 1963, onde o presidencialismo foi escolhido como o formato de governoe seu projeto tinha chance de começar. O governo tinha proposto as reformas de base (reforma política, fiscal, educacional, bancária e etc) que superassem o subdesenvolvimento brasileiro, porém a principal reforma desse plano era a agrária, que não conseguia ser aprovada no plenário, significando uma derrota do seu programa de governo. O Brasil tem o latifúndio enraizado em sua história desde os tempos de colônia, com uma perturbada relação do senhor de engenho com a sua terra, o controle sobre ela e quem ali trabalha. O latifundiário mantinha o status social privilegiado e controle das ações políticas durante o período colonial e acaba por manter sua hegemonia até os dias de hoje nessa relação de poder, conseguindo impedir as propostas de reforma agrária. 

O que contribui bastante para desestabilizar o governo foram as ações de organizações extrapartidárias como o Instituto Brasileiro de Ação Democrática (Ibad), a Escola Superior de Guerra (ESG) e o Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais (Ipes), sendo formados nos anos 50/60 pela nata do empresariado brasileiro, oficiais militares da ESG, representantes de empresas multinacionais, jornalistas e etc. Seu principal objetivo era a difamação em massa de João Goulart com acusações de incompetência, corrupção, desordem, subversão, anarquia, populismo e a ameaça iminente do comunismo que perambulava o imaginário do segmento reacionário da sociedade desde a era Vargas sendo intensificado no auge da Guerra Fria. Vale lembrar que estas organizações não apenas faziam mera propaganda anticomunista e antirreformas, mas também possuíam um serviço de inteligência articulando-se com os conspiradores que derrubariam Goulart e instaurariam um regime autoritário. 

O presidente fazia malabarismo, pois além de ser alvo da direita, sofria uma forte pressão reformista pela esquerda, tendo como resposta o comício com aproximadamente 200 mil pessoas e ocorreu em 13 de março de 1964. O comício da central do Brasil se tratava de um embate direto contra o congresso nacional, pretendendo realizar uma união das esquerdas e anunciar a realização de um plebiscito que definiria a agenda das reformas, modificando textos da constituição de 1946. Os parlamentares não viram o anúncio com bons olhos e o Ipesdava previsões de que eventualmente Jango tentaria dissolver o congresso, concentrar mais poderes e beneficiar políticos como Brizola. A bandeira da legalidade que tanto foi defendida em favor da posse de Jango anos antes, era agora apropriada pelo segmento reacionário sob uma nova narrativa onde os bons costumes, moralidade, a constituição e propriedade privada estariam em xeque. 

Em 19 de março de 1964, as ações de forças golpistas se mostram bem sucedidas com a ida de milhares de pessoas as ruas, aproximadamente 500 mil pessoas em todo o Brasil tinham o propósito de dar uma resposta ao comício da Central do Brasil e pedir pela intervenção militar. A marcha da Família com Deus e pela Liberdade era um dos grupos intervencionistas apoiados pelo governo de São Paulo, Igreja e empresários, onde as mulheres carregavam faixas e bandeiras com mensagens contra Jango, Brizola ecomunismo.Na mesma intensidade que essas manifestações da direita exageravam propositalmente a ameaça do comunismo ou de uma “república sindicalista” para criar o terror entre a classe dominante, a esquerda subestimou essas manifestações. Assim, formava-se uma frente de oposição ao governo que daria aos militares o apoio popular necessário para a derrubada de João Goulart, que finalmente acontece no dia 1 de abril de 1964 com Jango ordenando a soltura de militares de baixa patente após uma revolta reivindicando melhores condições de trabalho. A justificativa que as forças armadas buscavam estava pronta, a alta cúpula militar interpretou o caso como quebra de hierarquia e disciplina além da desmoralização do comando. Dando início a um regime que durou 21 anos marcando a história da república com a suspensão de direitos políticos, cassação de mandatos, intervenção em sindicatos e outras organizações, invasão e depredação das sedes da UNE, inquéritos policiais-militares, perseguições, prisões, assassinatos, tortura etc. 

Atualmente, o governo passa por uma intensa crise política em um contexto histórico completamente diferente dos anos 60, o qual um governo de esquerda é abalado por manifestações intervencionistas no auge da Guerra Fria, e em 2020 pessoas vão as ruas pedir por intervenção militar em favor de Presidente Bolsonaro para a manutenção do poder em meio a uma crise de saúde. No primeiro semestre de 2020, grupos se mobilizaram e foram as ruas de diversas capitais carregando a mesma simbologia e reivindicações de sessenta anos atrás, onde pedidos por democracia e intervenção militar eram colocados na mesma sentença. Até mesmo os slogans e rimas cafonas se repetem depois de tanto tempo, ao lado de cartazes e banners com a mesma ameaça iminente do comunismo miscigenado a uma aversão ao Partido dos Trabalhadores. Esses novos protestos tentam resgatar os símbolos e a essência dos movimentos que ocorreram em 1964, sendo realizados em datas simbólicas como o 19 de março de 2020 (56 anos dos protestos contra Jango), exaltação dos líderes golpistas e realização de uma nova Marcha da Família com Deus pela Liberdade por trás de um olhar revisionista da história. Essa mobilização também ataca o congresso nacional e o Supremo Tribunal Federal, onde categorizam o cenário político sob o comando de uma “ditadura do STF” e exigindo o seu fechamento que na verdade é uma instituição democrática judiciária responsável pela garantia da constituição. 

Se essa parcela da população reacionária faz parte da base de apoio ao Governo Bolsonaro, não se pode deixar de falar de um grande pilar de sua força, que foi capaz de elegê-lo de forma democrática em 2018 mas com a ajuda de disparos de fake news em aplicativos por mensagens, uma milícia virtual que atua dentro e fora do seu governo. Um verdadeiro projeto de desinformação com a participação membros da família Bolsonaro e financiamento de empresários, como Luciano Hang e Edgard Corona (Lojas Havan e Smartfit). O Ipes, que tinha um modus operandi com o objetivo de desestabilizar o governo da época, as milícias virtuais bolsonaristas atacam a oposição do governo, entidades, pessoas públicas e etc. Do governo Temer até o atual, a sociedade brasileira tem sofrido uma sequencia de retrocessos,fim de políticas públicas que garantam inclusão social, perdas trabalhistas e um aumento do abismo socioeconômico em prol de um projeto de governo neoliberal. Em meio a uma pandemia onde o Governo Federal trata uma doença que matou milhares com o maior descaso visto dentre todos os líderes mundiais, pessoas vão as ruas manifestar pedindo um formato de governo antidemocrático,desrespeitando todas as recomendações de órgãos de saúde. Uma dúvida paira no ar se a atual conjuntura política deixa margem para um revés na democracia e suas instituições.

REFERÊNCIAS:

  • VALLE, Maria Ribeiro do    1964-2014 : Golpe Militar, História, Memória, e Direitos Humanos / Maria Ribeiro do Vale (Org.). – São Paulo, SP : Cultura Acadêmica, 2014
  • SCHWARCZ, Lilia Moritz   Brasil : uma biografia / Lilia Moritz Schwarcz e Heloisa Murgel Starling – 2ºed. – São Paulo : Companhia das Letras, 2018

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